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Não te armes em herói!

Uma contextualização para o que sentimos mas não percebemos

A equipa nobox

«Mayday! Mayday! Houston [World], we’ve had a problem!

A Andreia tinha acabado de ver uma reprodução da missão Apollo 13 antes de ir fazer noite nas urgências e essa frase não lhe saía da cabeça. A caminho do serviço viu um agradecimento aos profissionais de saúde, os heróis do momento, aqueles que estão na linha da frente e dos quais tudo se espera e tudo se exige - compreensivelmente, porque uma boa parte do sucesso do combate ao COVID-19 está dependente deles, e de todas as abdicações e privações às quais são sujeitos. A Andreia sentiu um arrepio, uma sensação de peso e responsabilidade e pensou: “Isto é para mim? De repente tenho de ser uma heroína e responder a tudo isto, sem tempo de preparação? Estarei à altura?”. Quando entrou no seu serviço tinha a certeza de que se viviam tempos diferentes: o medo e a incerteza estavam ali, entre todos, disfarçado pela coragem que todos apresentavam. Entre normativas para ler, indicações nem sempre claras para seguir, uma sobrecarga mental superior à habitual, a Andreia, sem saber, vestiu a sua capa de heroína e começou mais um turno de 12 horas.»

A Andreia pode ser enfermeira, assistente operacional, médica ou farmacêutica, ou qualquer outro profissional de saúde - mas a história, tal como os desafios, são os mesmos para todos os grupos profissionais. 

A sociedade tem manifestado o seu reconhecimento aos profissionais de saúde de várias maneiras e já vimos vários momentos de elogio aos heróis do momento. Se é verdade que este reconhecimento pode ser importante, também é verdade que pode colocar uma pressão excessiva sobre os profissionais, desenvolvendo neles um estado de alerta superior ao habitual. Mas é verdade: vivemos em estado de alerta. Enquanto profissionais de saúde, sabemos que esta pandemia está a colocar desafios ao nosso sistema de saúde, às nossas equipas e a cada um de nós. Compreendemos o papel da diferença que podemos fazer, reforçado pelas responsabilidades acrescidas no contexto profissional e pelo reconhecimento mediático que recebemos, da mesma forma que um super-herói recebe altruisticamente os seus objetivos para mais uma missão de salvamento.

Assim, mesmo sem sabermos, pode surgir em nós o herói!

Tudo o que atravessamos tem um impacto individual intenso. Muitas são as emoções que sentimos, despoletadas pelo que estamos a viver, e mesmo ao longo de um só dia podemos experienciar todo o espectro de emoções: esperança, desânimo, energia, indiferença, cansaço, tristeza ou alegria. As emoções podem otimizar a nossa resposta ou influenciar negativamente a nossa performance

Uma pandemia, tal como a que estamos a viver, pode ser equiparada a um desastre, e a reação emocional nestes casos foi categorizada em fases, estudadas por Myers e Zunin, em eventos dos últimos 30 anos: pré-desastre, impacto, heróica, lua de mel, desilusão e reconstrução.

No gráfico abaixo podemos ver a evolução do estado emocional, entre dois extremos. Podemos ver que na fase do impacto observamos uma diminuição no estado emocional (correspondendo a emoções como o medo ou a tristeza). A comunidade reage ao evento com estados emocionais capazes de lidar com os desafios (com optimismo, altruísmo e espírito de entreajuda). Depois deste momento observa-se uma fase onde predominam emoções como a tristeza, desilusão ou desesperança. Gradualmente, e com o tempo, caminha-se para um restabelecimento, um “novo normal”.

Fonte: Zunin & Myers

Vários profissionais de saúde encontram-se na fase três - heróica - que se caracteriza por um elevado nível de atividade, motivação e altruísmo, mas com potencial para baixa produtividade e com uma maior probabilidade para desenvolver comportamentos de risco. Assim, alguns comportamentos que podem surgir nesta altura, e que transmitimos com o intuito de poderem ser mitigados, são:

  • Diminuir os cuidados de proteção individual no contacto com doentes;
  • Não permitir descanso ou relaxamento a si próprio;
  • Fazer mais, porque em dado momento alguém tem um rendimento mais alto;
  • Não assumir vulnerabilidades, com receio de juízos de valor;
  • Investir esforços em atividades com pouco ou nenhum impacto;
  • Tomar decisões precipitadas.

Assim, a nossa mensagem para ti, que temos a certeza que estás a dar o teu melhor é: não te armes em “herói” -  cuida de ti, evita os riscos desta fase, e não te esqueças que estamos numa  maratona que apenas começou.

A gestão correta desta fase e a minimização dos riscos associados facilitará a progressão pelas fases seguintes, em particular a fase de desilusão, onde se começa a notar o desgaste acumulado. E permitirá que tanto tu como a tua equipa aguentem não só o impacto inicial da crise, mas a resposta sustentada no tempo que ela exigirá!

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Mais informações:

Se quiseres saber mais sobre o modelo, descrevemos abaixo uma explicação resumida de cada uma das seis etapas:

  1. Pré-desastre - perante a pandemia, os diferentes países reagiram com diferentes estratégias. Emocionalmente, pode surgir o medo e a incerteza sobre a forma como o fenómeno vai afetar o dia a dia e as suas consequências
  2. Impacto, - sente-se o silêncio, as primeiras conferências de imprensa têm lugar, atenção mediática intensa. No caso da pandemia podemos considerar o impacto como o Caso 0, o primeiro identificado no país. Pode sentir-se confusão e descrença face às primeiras medidas
  3. Heróica, - elevado nível de atividade mas com potencial para baixa produtividade, acompanhada de um sentimento de altruísmo e com uma maior probabilidade de desenvolver comportamentos de risco. Enquanto profissionais de saúde, é importante manter os níveis de energia e atividade adequados, de forma a não comprometer a disponibilidade para as fases seguintes, nomeadamente a de desilusão e de reconstrução. É aqui que o princípio de que tudo isto é uma maratona e não um sprint ganha mais sentido. 
  4. Lua de mel, - com os recursos totalmente focados na pandemia, surge o optimismo e sensação de que vai ficar tudo bem. A sociedade mobiliza-se com donativos e iniciativas de interajuda. Embora algum deste espírito seja importante para a motivação interna e externa, é importante que não se criem falsas expectativas, que farão acentuar a fase da desilusão.
  5. Desilusão, - em contraste com a fase da lua de mel, nota-se o desgaste pois o nível de stress mantém-se e surgem reações negativas como a exaustão física ou o consumo de substâncias. Continuam a existir necessidades que não são satisfeitas e pode haver sensação de abandono. Esta fase pode durar meses. Ainda que esta fase seja difícil, é preciso encontrar fontes de motivação com vista à próxima fase.
  6. Reconstrução - gradualmente, as pessoas começam a ajustar-se ao novo normal, utilizando os seus próprios recursos. Algumas pessoas podem vir a desenvolver dificuldade em gerir emocionalmente a experiência vivida. A lembrança das experiências do passado, como o confinamento, vêm à consciência durante algum tempo.

Fonte:

DeWolfe, D. J., 2000. Training manual for mental health and human service workers in major disasters (2nd ed., HHS Publication No. ADM 90-538). Rockville, MD: U.S. Department of Health and Human Services, Substance Abuse and Mental Health Services Administration, Center for Mental Health Services.

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